sábado, 4 de janeiro de 2014

DOSSIER EROSÃO COSTEIRA

«Planos de Ordenamento da Orla Costeira: A difícil gestão do Litoral
As pressões sobre o litoral português são inúmeras e pouco se tem avançado num caminho de gestão integrada e sustentável. Com todos os Planos de Ordenamento de Orla Costeira concluídos em território continental mas em fase muito mais atrasada nas regiões autónomas, com a nova legislação recentemente aprovada, que futuros se desenham para o litoral?
“Mais de 250 mil ingressos vendidos nas praias”. Este é o título de uma notícia do passado dia 22 de Setembro, do Diário de Notícias da Madeira, que avança: “A FrenteMar vendeu, entre 21 de Junho e ontem (último dia da época balnear), 252.816 ingressos nos complexos balneares do Lido, Barreirinha e Ponta Gorda”. Segundo Luísa Tovar, da comissão instaladora da Associação Água Pública, este tipo de realidade, até aqui com aspectos de legalidade questionável, poderá estender-se ao território continental, com as portas abertas pela recente legislação da água e de titularidade dos recursos hídricos, aprovada na Assembleia da República no passado dia 29 de Setembro, e que foi alvo de significativa oposição da sociedade civil.
Mas no que se refere às praias e ao litoral as questões e polémicas que no nosso país se levantam são muitas. A zona costeira é demasiado apetecível e a sobrexploração turística e urbanística não tem sido evitada. A erosão compromete a nossa costa. O ordenamento é amplamente tido como essencial, mas os Planos de Ordenamento de Orla Costeira (POOC) têm tardado e sido alvo de controvérsia. Os investimentos necessários vão sendo adiados.
A grande fragmentação de responsabilidades entre as instituições que intervêm na gestão da orla costeira é outro dos aspectos críticos sempre destacado, por inibir uma gestão integrada e sustentável. Talvez numa inicial e parcial resposta, recentemente, no passado dia 3 de Agosto, foi criado um grupo de trabalho com o objectivo de desenvolver as bases de uma estratégia que sustente uma política de ordenamento, planeamento e gestão da zona costeira portuguesa, continental e insular, nas suas vertentes terrestre e marinha.
Afinal que realidade e que gestão e ordenamento se quer para o litoral? O que está feito e o que está por fazer? Este é um assunto na ordem do dia. O QUERCUS Ambiente foi-se informar junto de especialistas, associações e entidades responsáveis procurando começar a traçar um quadro da situação. 

Os problemas: turismo, construção e erosão
Um estudo elaborado pelo Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), de Março de 2001, “Projecto de Reflexão sobre o Desenvolvimento Sustentável da Zona Costeira” equacionou as várias dimensões dos problemas associados à gestão do litoral. Segundo o estudo, o “principal factor que obrigou a uma crescente preocupação sobre a zona costeira foi, muito provavelmente, o turismo”. O turismo é considerado “o principal responsável pela utilização do litoral, estando associado aos gravíssimos problemas de ordenamento do território (e ocupação de zonas de risco)”. A erosão, os riscos associados à elevação do nível médio do mar e a poluição são outros dos aspectos referidos, concretamente e em ligação, como exigindo especial atenção de gestores e políticos.

Analisando a gestão da zona costeira, o estudo afirma que: “A grande fragmentação de responsabilidades entre as instituições que intervêm na gestão da orla costeira cria conflitos de natureza jurisdicional e impede ou dificulta a resolução das questões concretas relativas ao desenvolvimento sustentável tanto ao nível das entidades públicas como privadas. Por outro lado, estas diversas instituições têm perspectivas, prioridades e interesses muito diversos e de difícil compatibilização. A inexistência de um mecanismo de coordenação prejudica a gestão integrada e sustentável da orla costeira e tende a promover um desenvolvimento baseado na solução de conflitos de forma casuística, nomeadamente por via de mecanismos de pressão sobre as instituições e o recurso a processos dilatórios”.

Um relatório recente da Comissão Europeia vem reforçar a importância do problema da erosão. Segundo o relatório, “Living with Coastal Erosion in Europe: Sediment and Space for Sustainability”, elaborado por peritos entre 2001 e 2002, Portugal encontra-se em quarto lugar entre os 18 países membros com as maiores incidências de processos erosivos costeiros, tendo quase um terço, 28,5%, da sua orla já comprometida.

João Alveirinho Dias, especialista em erosão costeira e professor da Universidade do Algarve, considera que há uma prioridade: um correcto ordenamento do território. Um ordenamento que não abarca apenas especificamente a orla costeira: “As zonas costeiras são profundamente dependentes das bacias hidrográficas, designadamente no que se refere ao abastecimento sedimentar, e todas as intervenções efectuadas nestas acabam por se reflectir naquelas. Em Portugal, a maior parte da erosão costeira que se verifica deve-se a deficiências sedimentares, sendo as barragens provavelmente os principais responsáveis, juntamente com a extracção de areias nos estuários e nos rios e as dragagens portuárias”. Assim, como refere o estudo do CNADS, “as areias que deveriam ir alimentar o litoral, vão para a indústria de construção”.

Avaliando o ordenamento das zonas costeiras, Alveirinho Dias afirma: “Claro que, sendo o ordenamento do território, de forma geral, muito deficiente, o ordenamento das zonas costeiras é bastante mau. Começa por não se contemplarem os riscos naturais, como temporais, sobre-elevações do nível marinho – como aconteceu recentemente em New Orleans -, tsunamis, elevação secular do nível médio do mar, etc, pelo que não me admiraria se um dia destes houvesse problemas muito graves pelo menos nas zonas de maior risco, como na Praia de Faro ou na Vagueira”.

As prioridades: alterar modelos de financiamento e de gestão
Para Alveirinho Dias, existem desde logo certos aspectos prioritários na gestão e ordenamento da orla costeira. “Devem-se considerar sempre e de forma prioritária os riscos naturais, evitando a ocupação permanente das zonas de maior risco” e “urge conseguir dar a volta aos célebres direitos adquiridos, responsáveis por grande parte da ocupação de zonas de risco elevado, e fazer com que os direitos da população portuguesa na generalidade – incluindo os direitos nos nossos vindouros – sejam mais importante do que os direitos dos privados”.

Para este especialista, “só se pode gerir correctamente aquilo que se conhece, e como o litoral é definido pelo mar, é fundamental ter especialistas em processos marinhos e costeiros nos organismos de gestão; em Portugal, nos diferentes organismos (INAG, ICN, CCDR, etc.), todos em conjunto, não têm sequer um único oceanógrafo…”. A fragmentação da gestão é também referida, como “incompatível com a correcta gestão do litoral”, sendo que em Portugal, “apesar da comunidade científica defender, há mais de uma década, a criação de um organismo único que aglutine as competências sobre o litoral ou, pelo menos, que coordene os actos de gestão, o litoral continua dividido em múltiplos feudozinhos sobre os quais cada organismo regional ou local (CCDR, Câmaras, Áreas Protegidas, etc.) tenta ter domínio …”. 

Outros dois aspectos que salienta são o de “acabar de uma vez por todas com a discussão sobre a aplicação ou não da Lei, como se verifica, por exemplo, com as construções clandestinas, em que se anda há décadas a discutir se a Lei deve ou não ser cumprida…” e “modificar o sistema de financiamento das autarquias, pois que enquanto estas estiverem financeiramente dependentes do betão (isto é, da construção) continuarão a defender e a viabilizar a construção intensiva mesmo em zonas de risco muito elevado”.

Ordenamento: a situação dos POOC
Para um correcto ordenamento do litoral é necessário haver bons planos e uma eficiente aplicação dos seus princípios e medidas.

Os Planos de Ordenamento de Orla Costeira foram criados em 1993, através do Decreto-Lei nº309/93, precisamente na perspectiva de ordenar a confusão dominante no litoral português. Abrangem uma faixa ao longo do litoral, a que se chamou zona terrestre de protecção, com uma largura máxima de 500 metros. E, também, uma faixa marítima de protecção, que tem como limite inferior os 30 metros. Cobrem assim domínio público marítimo. Têm como objectivos ordenar os diferentes usos e actividades específicas da orla costeira, a classificação, valorização e qualificação das praias e a regulamentação do uso balnear, a orientação do desenvolvimento de actividades específicas da orla costeira e a defesa e conservação da natureza.

Em território continental, segundo informações do Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional o último dos nove POOC foi aprovado no passado dia 24 de Junho. Na Região Autónoma da Madeira, ainda se encontram todos por aprovar. De acordo com a Secretaria Regional do Equipamento Social e Transportes “todos os POOC estão actualmente em fase final de reformulação técnica dos projectos de planos anteriormente elaborados, pelo que a sua entrada em vigor deverá ocorrer, após as respectivas discussões públicas”.

Na Região Autónoma dos Açores, segundo a Secretaria Regional do Ambiente e do Mar, “encontram-se já aprovados na Região Autónoma dos Açores o Plano de Ordenamento de Orla Costeira da Ilha de S. Jorge, o POOC da Costa Norte da Ilha de S. Miguel e o POOC da Ilha Terceira. Está em elaboração o POOC da Costa Sul da Ilha de São Miguel. A elaboração dos POOCs de Santa Maria e Pico vão ser lançados a concurso”. Refira-se, que o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional não tem que ser informado da aprovação dos POOC das Regiões Autónomas…

POOC: a questão dos lobbies
Na Madeira a legislação, elaboração e discussão dos POOC tem sido controversa. O Ministro da República escreveu um requerimento ao Tribunal Constitucional referente à legislação regional que adaptava a legislação nacional sobre POOC contrariando-a abertamente ao definir que “até à aprovação dos planos de ordenamento de orla costeira, podem ser atribuídos usos privativos que impliquem novas construções e instalações fixas e indesmontáveis na área por eles abrangida”. O Governo Regional recuou e criou nova legislação, que apenas revoga a anterior. Na discussão pública dos dois POOC da Costa Sul a associação Cosmos considerou ter sido sonegada a possibilidade de consulta directa e atempada dos planos, e levou o caso a tribunal. O Supremo Tribunal Administrativo estabeleceu que o processo de elaboração dos POOC retrocederia a fase anterior à discussão pública. Entretanto, as associações ambientalistas têm posto acções contra empreendimentos turísticos, nomeadamente pelo uso privativo do domínio público hídrico em zona abrangida por POOC ainda não aprovados.

Numa avaliação geral, no seu estudo o CNADS considera que porque “os POOC têm de ter a concordância dos poderes autárquicos, das associações de pescadores, dos lobbies do turismo, da indústria, dos parques naturais, e de um sem número de associações e instituições geralmente com interesses antagónicos, o resultado é o “possível”. Prosseguindo a avaliação, é um facto que tendo “sido elaborados numa perspectiva de ocupação/utilização, e não tendo sido efectuados, em muitos dos POOC, estudos dos riscos, e ainda sendo o resultado de compromissos difíceis entre os poderes locais, os diferentes sectores do poder central, e os diferentes lobbies, o resultado final é, por vezes, problemático. E, porque estão aprovados (e mesmo quando ainda não o estão), avança-se com o que aí se propõe sem acautelar estudos complementares”.

Para Alveirinho Dias, “A qualidade é muito heterogénea mas, na generalidade, basta ver quais são as principais preocupações para concluir que, em geral, são uma grande mistificação. Por via de regra são planos de ordenamento de apoios de praia e de parques de estacionamento … Não há um único que contemple adequadamente os riscos naturais … Não há um único que não tenha sido adaptado aos interesses municipais e/ou dos grupos económicos, modificando o que (bem ou mal, mas certamente com algum fundamento) tinha sido proposto pelas equipas que o elaboraram”.

O presidente da Quercus, Hélder Sínola, avalia: “Independentemente dos defeitos e das virtudes dos planos aprovados, a verdade é que pouco tem sido feito para a sua implementação. Para além dos erros cometidos no passado sobre o nosso litoral que tardam em ser corrigidos, continuam a ser infligidas novas violações à integridade do equilíbrio que se pretende para esta faixa muito sensível do nosso território”.

Futuros: turismo entre as utilizações principais do domínio público hídrico?
A gestão do litoral está também dependente da legislação que surge. A recente aprovação da Lei-quadro da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos esboçam novos cenários para o futuro do litoral.

A nova legislação foi alvo de significativa oposição da sociedade civil, quer pela escassa e pouco aberta discussão pública, quer pela controvérsia de constituir ou não a transposição da directiva europeia e pelas questões levantadas da salvaguarda do domínio público hídrico, estando em causa o tipo de uso e usufruto de rios, albufeiras e praias. A contestação levou à apresentação de um abaixo assinado que reuniu perto de 15 mil assinaturas e a uma declaração conjunta de nove organizações, incluindo a Associação Água Pública, a Quercus, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a Confederação Nacional da Agricultura e a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP).

Na perspectiva da gestão e ordenamento do litoral, as posições e questões apresentadas são várias.

A presidente da Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos (APRH), Teresa Leitão, deu nota positiva à criação das cinco Administrações de Região Hidrográfica (ARH), considerando que “as ARH vão acabar com a dispersão de competências. A lei consolida um quadro legislativo cuja aplicação estava entregue a várias entidades, competindo agora o planeamento, licenciamento e fiscalização, a nível regional, a uma única entidade”. A LPN considera “inaceitável que se inclua a edificação de empreendimentos turísticos no conjunto de utilizações principais do domínio público hídrico” e também “inaceitável a atribuição de privilégios de utilização e licenciamento às Autoridades Marítimas e Portuárias, no âmbito do domínio público hídrico. Dada a multiplicidade dos interesses de utilização nas áreas de jurisdição destas entidades, a gestão e licenciamento deverá ficar a cargo das entidades competentes no restante território, por forma a garantir uma gestão integrada da água”.

Para Luísa Tovar, na nova legislação, “a intenção de venda do actual domínio público hídrico é incontestável” e “A privatização do domínio público hídrico materializa-se principalmente de três formas”. Por um lado “revoga legislação que enumera as coisas incluídas no domínio público, e subtrai várias na nova listagem. Transfere assim subrepticiamente coisas do domínio público para a propriedade patrimonial do Estado, ou seja, transforma-as em mercadorias que pode vender ou penhorar”. Por outro, “institui que o Governo, por simples despacho ministerial, pode transferir o que entender do domínio público hídrico para a propriedade patrimonial do Estado”. E, ainda, “permite a concessão a privados, por períodos de 75 anos, de toda a exploração comercial, com exclusividade de utilização e privação de acesso ou sublocação a terceiros do domínio público hídrico – isto é, de exercício pleno de direitos de proprietário”.

No que se refere ao caso específico das praias e suas futuras utilizações, Luísa Tovar adianta que com a legislação aprovada, as praias marinhas, actualmente domínio público hídrico, passam a poder ser “propriedade patrimonial do Estado. Para já, o proprietário é o mesmo. A grande diferença é que o Governo não pode vender coisas do domínio, e se forem propriedade patrimonial já pode vendê-las, são uma mercadoria como outra qualquer.

Além disso, não pode ser vedado o acesso ao domínio público hídrico, excepto em casos muito especiais”. E acrescenta: “além de tirar as praias do domínio público passa a dar concessões para vedar o acesso aos rios e ao mar – especialmente a empreendimentos turísticos”.

Heldér Spínola refere que “No Funchal, na prática, essa situação já ocorre e fez com que em todo o litoral desse concelho apenas uma praia tenha acesso livre aos veraneantes, todas as outras implicam o pagamento à entrada e outras são mesmo exclusivas para os turistas hospedados nos hotéis adjacentes. Caso se venhm a generalizar concessões do litoral para usos privados corremos o risco da pressão sobre esta faixa vir a acentuar-se ainda mais, principalmente com projectos turistico-imobiliários”.

Do quadro traçado pode-se afirmar que o recentemente criado grupo de trabalho que tem por missão desenvolver as bases de uma estratégia que sustente uma política de ordenamento, planeamento e gestão da zona costeira portuguesa, continental e insular, nas suas vertentes terrestre e marinha – que será coordenado por Fernando Veloso Gomes – tem uma enorme tarefa entre mãos… Até ao final deste ano, terá de apresentar um relatório final, com as linhas gerais da estratégia.

Sofia Vilarigues
QUERCUS Ambiente n.º 16 (Outubro 2005)»
Fonte: Quercus - ANCN

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