«“Sacanas sem Lei”, último filme
de Quentin Tarantino, tem uma história por detrás da própria história do filme,
que é interessante conhecer para melhor se perspectivar a obra.
Na verdade, “Inglourious
Basterds” inscreve-se numa longa lista de filmes sobre a II Guerra Mundial,
onde um grupo de “patifes” ou “sacanas” a contas com a justiça militar se vê
envolvido numa acção contra os nazis, tornando-se heróis sem muito bem
perceberem como. O primeiro grande filme desta onda foi “Os Doze
Indomáveis Patifes” (The Dirty Dozen), de Robert Aldrich (1967), com um elenco
notável e uma moralidade evidente, para lá da história e das peripécias
decorrentes. O que se procurava testemunhar era a possibilidade de uma “segunda
hipótese” que permitisse a redenção de um grupo de proscritos que afinal só
precisava de uma nova oportunidade para se regenerar.
Muitos outros filmes se seguiram e procuraram reproduzir
o sucesso desta obra, que ela própria teve sequelas, nenhuma delas tão
brilhante como o original.
Nas décadas de 60 e 70, os
estúdios italianos tinham, por bom ou mau hábito, copiar, com pequenos
orçamentos, e em jeito de série B, os grandes sucessos de aventura, acção,
terror ou horror que se afirmassem em qualquer outro país, nomeadamente no
universo anglo-saxónico. Tendo sido sobretudo os êxitos norte-americanos
pirateados até à saciedade. Em filmes que, por vezes, tinham algum interesse
(há muitos westerns deste período com uma qualidade inequívoca, que deram a
conhecer realizadores como Sergio Leoni e lançaram a carreira de actores como
Clint Eastwod), mas a maioria era de péssima qualidade, de um
aproveitamento sem escrúpulos das emoções mais primárias que existem no mais
fácil dos espectadores.
Não foram só os westerns que foram “revisitados” ou,
melhor, “vampirizados”, pelos realizadores italianos (quase sempre com
pseudónimos anglicizados), mas também os filmes de terror (que nos deram
surpresas agradáveis como Dario Argento, por exemplo) ou de horror (onde o
canibalismo e os mortos-vivos bateram recordes de mau gosto). Igualmente os
filmes bélicos tiveram o seu auge e uma das obras mais referenciadas é um filme
de 1978, assinado por Enzo G. Castellari (que também ficou conhecido por
Stephen M. Andrews, Enzo Girolami Castellari, Enzo Castellari, Enzo Girolami,
Enzo Girollami, E.G. Rowland ou Enzo G. Rowland), com o título original
italiano “Quel Maledetto Treno Blindato”. Nos EUA teve várias outras
designações, como “The Inglorious Bastards”, “Counterfeit Commandos”, “Deadly
Mission”, “G.I. Bro” ou Hell's Heroes”, para lá de nas Filipinas se ter chamado
“The Dirty Bastard”. Em Portugal terá sido “Seis Gloriosos Patifes" e, no
Brasil, “Assalto ao Trem Blindado”.
Ora bem, Quentin Tarantino tem
desde sempre uma preferência muito especial por séries B, quer sejam
americanas, quer sejam de outras origens, das europeias às asiáticas.
Quase todos os seus filmes, de “Cães Danados” a “À Prova de Morte”, são
demonstrações disso e muito ligadas ao imaginário popular, dos romances de
“pulp fiction” aos “comics”, mas sobretudo aos filmes de sessão dupla em salas
de bairro. Mais uma vez, isso acontece em “Inglourious
Basterds” que, desta feita de forma explícita e por demais publicitada pelo
próprio cineasta, se vai basear no já referido “The Inglorious Bastards”, do
também já citado italiano Enzo G. Castellari. O que temos é uma
“homenagem” de Tarantino a um realizador da acção pura, que faz filmes baseados
numa estética (se de estética estamos falando) que tem a ver sobretudo com
acção e violência sem muitas explicações históricas ou sociológicas com um
enredo diminuto, reduzido a uma ténue linha narrativa que permita fazer
suceder, com alguma lógica, as referidas cenas de “Kiss, Kiss, Bang, Bang”
(aqui mais “Bang, Bang” e “Pum, Pum”, do que “Kiss, Kiss”). Este género de
obras não se preocupa com plausibilidade de situações ou densidade psicológica
de personagens, mas com a possibilidade de mandar pelos ares muitos soldados
inimigos, ao som de estridentes explosões, que levam consigo tanques ou
camionetas de prisioneiros militares. Este o caso da obra de Enzo G.
Castellari.
“Quel Maledetto Treno Blindato” é uma película de guerra,
de um sub-género muito explorado no cinema, a II Guerra Mundial, ou “os filmes
de nazis”. O argumento é de Sergio Grieco e do realizador, o elenco conta
actores popularizados neste tipo de filmes, como o sueco Bo Svenson, o
afro-americano Fred Williamson, entre outros. Estamos no verão de 1944, na
Europa, mais precisamente em França, num acampamento americano. Alguns
militares, condenados por crimes graves, são encaixotados numa camioneta rumo
ao seu destino mais previsível, o fuzilamento.
Um desertor, Burl (Jackie Basehart), um ladrão, Nick
Colasanti (Michael Pergolani), um assassino, Fred (Fred Williamson), um
revoltado, Tony (Peter Hooten) e um tenente, Jaeger (Bo Svenson), constituem
este grupo de soldados americanos condenados que partem de um acampamento nas
Ardenas. Durante a viagem a coluna é bombardeada por aviões alemães e os
prisioneiros conseguem libertar-se e fugir. Querem chegar à Suíça. Na
deslocação encontram um desertor alemão que se junta ao grupo, formando os
“Seis Gloriosos Patifes” da versão portuguesa. Mas, quando são encontrados por
membros da resistência francesa são confundidos com um comando que vem efectuar
uma perigosa missão de sabotagem, tendo que assaltar um comboio alemão com o
objectivo de roubar um dispositivo que alimenta os famigerados V2. E o grupo
aceita a missão e “gloriosamente” cumpre-a na íntegra.
Os “westerns spaghetti” (filmes do Oeste, rodados na
Europa, sobretudo em Itália e Espanha, entre 60 e 70) tinham criado um estilo.
Não havia heróis, mas anti-heróis, personagens romantizadas sem passado nem
futuro, andrajosos mas fotogénicos (veja-se Eastwwod com o seu fósforo ou
palito ao canto da boca), que atravessavam histórias de uma violência
epidérmica, com vilões da pior espécie. A música
inspirada de Morricone (e outros continuadores) e uma fotografia densa e
soturna criavam o ambiente. E a mística destas obras que tiveram o
efeito de projectar o estilo para outros géneros. O filme de guerra, por
exemplo.
Em “Quel Maledetto Treno Blindato” não há heróis
impolutos, mas patifes contra vilões, assassinos e ladrões contra psicopatas
institucionalizados num sistema político que queria dominar o mundo. Obviamente que o público está do lado dos maus simpáticos
contra os péssimos antipáticos. O tom destas obras era de violência
extrema, mas quase trabalhada ao nível da violência dos cartoons (Speedy
Gonzalez contra o demónio da Tasmânia) o que acarretava um humor distanciador.
Depois repisavam-se receitas retiradas de outras obras de referência imediata
para o grande público. No caso do filme de Enzo G. Castellari são óbvias as
citações de “Os Doze Indomáveis Patifes” (Robert Aldrich, 1967), “O Desafio das
Águias” (John Sturges, 1973), “Heróis por Conta Própria” (Brian G. Hutton,
1970), “Cruz de Ferro” (Sam Peckinpah, 1877), entre muitos outros. Olhando a
obra não me parece que estas referências sejam tanto de uma cinefilia de
homenagem, mas fundamentalmente um ingénuo aproveitamento de receitas comprovadas
em filmes de grande espectáculo e grande sucesso de bilheteira. O caso de
Quentin Tarantino é distinto. Trata-se de uma cinefilia óbvia de um entusiasta
por este tipo de filmes de série B, que ele consumiu abundantemente e aprendeu
a amar quando ainda era empregado num vídeo clube e se alimentava dessa
matéria-prima. Mas, as diferenças são visíveis. Logo nos títulos que parecem
idênticos e não são. “The Inglorious Bastards” é o título americano do filme de
Castellari, “Inglourious Basterds” é o do filme de Tarantino. A troca do a pelo e, o o acrescentado sublinham a diferença.
Quentin Tarantino escreveu o projecto e diga-se que,
tanto ao nível da escrita do argumento como na sua concretização em imagens, o
efeito é brilhante. Estamos ao nível do melhor Tarantino.
O cenário é novamente a II Guerra Mundial, quase ao cair
do pano, e a história começa na França sob ocupação alemã, onde um oficial das
SS, o coronel Hans Landa (Christoph Waltz) dizima traiçoeiramente uma família
de judeus. Mas, Shosanna (Mélanie Laurent), uma das filhas, consegue fugir e
será ela que mais tarde, sob o nome de Emmanuelle Mimieux, irá dirigir um
cinema em Paris. Entretanto, do lado dos Aliados, e entre as tropas americanas,
organiza-se um grupo especial de judeus, comandados pelo tenente Aldo Raine
(Brad Pitt), conhecido por “Aldo, o Apache” (dado o seu particular gosto por
escalpes) que vai liderar este bando de sádicos soldados americanos, numa
cruzada que espalha o terror entre os nazis. Uma das espias que colabora com a
resistência francesa é a famosa actriz Bridget von Hammersmark (Diane Kruger)
que todavia não tem um futuro risonho. Mais perto do fim da guerra, na sala de
cinema de Emmanuelle Mimieux, onde se estreia "O Orgulho da Nação",
um filme de propaganda nazi, na presença do próprio Adolf Hitler, de Joseph
Goebbels e dos principais líderes do III Reich, reúnem-se os “basterds” e o
coronel Hans Landa, além de Shosanna, que vai engendrar finalmente a sua
vingança, numa pirotecnia brutal que pretende logo ali destruir o III Reich.
Ao contrário do filme de
Castellari, Tarantino constrói uma obra extremamente palavrosa, com diálogos
infindáveis, onde – o próprio o confessa – testa o seu poder de criar suspense
e de o manter. A sequência da taberna francesa com a actriz e os militares
alemães é bem exemplar deste propósito. Esta alteração é particularmente
significativa para se compreenderem as intenções de Tarantino e a sua base
cultural, diversa da de Castellari. Este é um técnico competente para criar
cenas de acção, Tarantino é um cinéfilo com uma preparação cinematográfica
muito mais apurada. Castellari nunca foi seleccionado para Cannes (nem nunca
concorreu, se calhar, é o mais certo), Tarantino é-o quando quiser e
declararam-no desde logo o grande acontecimento do Festival desse ano. Um é
olhado como um mero tarefeiro, o outro como um pós-moderno. Toda a diferença. O
filme de Tarantino organiza-se em redor de uma sala de cinema e da história do
cinema. A sala do cinema é o lugar físico onde irá
acontecer o momento final, capital, da obra. É nessa sala de cinema, e
através de bobines de filmes, que se irá construir a História. Uma História que tem pouco a ver com a verdadeira História,
mas que marca bem a diferença entre a realidade (que existe) e a ficção (que
tudo torna possível). Mas não será só nessa sala de cinema que o cinema
constrói a História, pois o próprio filme é construído pelo cinema, pela sua
História (raros filmes terão tantas citações de outros filmes, desde cenas,
personagens, referências no diálogo, cartazes, fotografias, legendas, temas
musicais, etc.). Este é um filme que vampiriza o
cinema, como outrora o fizeram os cineastas italianos dos anos 60 e 70.
Curiosamente nessa altura os italianos copiavam os americanos, agora é um
americano que se volta para o cinema italiano e nele vai beber inspiração.
Círculo fechado.
Diga-se que ao nível de intenções
elas prolongam-se de um realizador para o outro. Tarantino realiza um filme
onde não há bons e maus, mas maus e mais maus. Uns são péssimos por tradição
(os nazis), outros são maus por vingança e sadismo. Pelo meio há alguns
inocentes que morrem ou traem, franceses ocupados a bem ou a mal, e resistentes
que se esforçam, mas estamos num mundo onde não há ideologias ou causas. Onde
parece não haver grandes diferenças comportamentais ao nível ético. Os nazis
matam judeus como ratos, os “basterds” matam nazis escalpelizando-os com gozo
evidente. Claro que há uma ironia forte a tratar o tema, claro que os diálogos
são divertidos, claro que todos percebemos que Tarantino se diverte e nos
diverte. Claro que Tarantino não acredita em nada a não ser no cinema. No seu
cinema. De acção e diversão. Sem outras pretensões. Claro que é bom nisso,
claro que a realização é brilhante, o argumento bem escrito, os actores notáveis
(fabuloso Christoph Waltz, no papel do coronel Hans Landa), a banda sonora
muito bem escolhida (recorrendo a muitos temas musicais de filmes antigos que
Tarantino cita e homenageia). Claro que “Sacanas sem Lei” é um filme a não
perder. Mas fica claro também que este não é o “meu” cinema. Apesar de me ter
divertido muito a vê-lo. Mas a verdade é que, no final, algo me incomodava (por
exemplo: ser levado a achar “porreiros” e “simpáticos” caçadores de escalpes
nazis).» De Lauro António.