Sempre à morte, Vanessa?
Em nenhuma estrada de Portugal há tantos ciclistas como na que liga Arcozelo aos Carvalhos, no concelho de Gaia. São de todas as idades e tipos, mas principalmente homens para cima dos 50 anos pedalando bicicletas de competição e envergando capacetes, calções de licra, blusas justas e sapatilhas especiais. Vê-se que há a febre do ciclismo à volta de Perosinho e isso só pode ter uma explicação: Venceslau Fernandes.
O “velho Lau”, como lhe chamavam quando era novo, tem uma loja e uma oficina de bicicletas na rua 25 de Abril, no centro da vila. De fato-macaco azul, cabelo branco comprido e desgrenhado, é lá que passa a maior parte dos seus dias, a vender e a consertar bicicletas. Não manda embora nenhum cliente, ainda que estejam outros à espera e já sejam 10 ou 11 da noite. E nunca deixa de lhes explicar as vertentes mais subtis dos problemas mecânicos das suas bicicletas. Mesmo que isso implique não lhes vender uma roda, mas apenas substituir os cubos ou a cassete de cremalheiras.
Na oficina de Venceslau, o rádio está sempre sintonizado na Renascença, e tanto pode passar música como uma missa inteira, com a Avé Maria rezada em coro pelos fiéis numa igreja. Num caso ou noutro, Lau não pára de falar. Tem sempre assunto e um grande orgulho nisso. “Se eu começasse a contar-lhe todas as minhas histórias”, diz ele, “ficaríamos até de manhã e nem daríamos pelo passar das horas, porque são coisas tão interessantes que temos sempre vontade de ouvir mais”.
Venceslau Fernandes, o antigo ciclista que participou 22 vezes na Volta a Portugal e ganhou uma, em 1984, é uma figura incontornável em Perosinho. Além da oficina de bicicletas, fundou um clube de triatlo e treina jovens atletas. E outros não tão jovens. Nos circuitos que organiza pelas estradas da região participam ciclistas de todas as categorias.
Nesta manhã de domingo de Junho, por exemplo, o percurso vai de Perosinho a Ovar, Furadouro, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira, Estarreja… uns 100 quilómetros que Venceslau, de 66 anos, vai pedalar em ritmo de corrida, ao lado do filho, Venceslau júnior, de 15 anos, que se prepara para o Campeonato Nacional de Ciclismo do fim-de-semana seguinte, e um grupo de ciclistas adolescentes e outro de séniores. E ainda de uma convidada especial, a mesma que surge nos pósteres e artigos de jornais afixados por toda a oficina e andava há muito afastada destas corridas. “Redorde de vitórias” é o título de um dos artigos na parede. Outro diz: “O mundo a seus pés”.
Venceslau Fernandes é o segundo habitante de Perosinho mais famoso do mundo. O primeiro é a sua filha mais velha, Vanessa Fernandes.
Vanessa está aqui em segredo. Teoricamente, afastou-se das competições e treinos e refugiou-se algures numa estância longínqua e desconhecida. Na realidade, está há meses internada num centro de recuperação para doentes compulsivos, no centro do país. Veio passar uma semana a casa, mas vai voltar para a clínica, onde ficará mais um mês.
Cortou a comunicação com todo o seu passado, os colegas e os amigos. Não atende o telefone, não fala a jornalistas, e até os contactos com a família têm sido espaçados e curtos. Foi entregue a uma equipa multidisciplinar de cerca de 20 elementos, chefiada pelo treinador de atletismo Paulo Colaço e o psicólogo E. S., e acompanhada pelos pais, Venceslau e Hermínia Fernandes, e o presidente da Federação de Triatlo, José Luís Ferreira.
O tratamento a que está submetida é intensivo e integrado, mas ao mesmo tempo Vanessa Fernandes está a treinar. Segundo Paulo Colaço, o objectivo é apenas manter a forma física e um nível de preparação que permita à ex-atleta voltar à alta-competição se e quando quiser.
No entanto, o seu ritmo de três treinos por dia, de corrida, natação e ciclismo, tem volume e intensidade consentâneos com uma preparação para participar já nos próximos Jogos Olímpicos, em 2012, em Londres.
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Muito poucos atletas no mundo ganharam tantas medalhas tão jovens e em tão pouco tempo como Vanessa Fernandes. Começou a participar em campeonatos europeus de juniores aos 16 anos, pouco depois de ter ido viver para o Centro de Alto Rendimento (CAR) do Jamor, por convite da Federação de Triatlo de Portugal, e aos 17 obteve a primeira medalha europeia de bronze. Em 2003, com 18 anos, era campeã europeia júnior, mas já há um ano que participava nas competições a Taça do Mundo de elites. Ainda tinha 18 anos quando ganhou a sua primeira competição da Taça do Mundo de elites, em Madrid. Em 2004 ficou em 8º lugar nos Jogos Olímpicos de Atenas, e a partir daí começou a coleccionar vitórias no circuito da Taça do Mundo. Em 2006 foi segunda nos Mundiais de Lausanne, e em 2007 tornou-se campeã do Mundo. Entre 2006 e 2007, aliás, ganhou 20 medalhas de ouro em competições de alto nível. Taças do Mundo ganhou, ao todo, 20. Além de 4 vitórias no Campeonato da Europa de sub-23, e duas nos campeonatos do Mundo de Duatlo. Só no ano de 2006, o mais produtivo da sua carreira, conquistou onze vitórias, 6 das quais em Taças do Mundo.
Em 2008 obteve a medalha de prata nas Olimpíadas de Pequim, e depois começou a crise. Oficialmente, teve várias lesões e problemas de motivação. Os resultados pioraram. Em 2009 decidiu abandonar o CAR e regressar a casa, em Perosinho. Rompeu com Sérgio Santos, o treinador da Federação, com quem tinha ganho tudo, e começou a trabalhar com Paulo Colaço, um técnico do Porto.
Mas os resultados desportivos não melhoraram. A motivação para o treino também não. Tentou ter uma vida normal, divertir-se, ter amigos e paixões, como qualquer jovem, mas também isso não correu bem.
Em Fevereiro deste ano anunciou o abandono da prática desportiva de alta-competição. Pouco depois foi internada e não mais se ouviu falar dela.
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Vanessa nasceu em 1985, um ano depois de o pai ter ganho a Volta a Portugal. Venceslau estava no seu auge desportivo. Continuou a participar em muitas provas, incluindo a Volta, e a mulher continuou a acompanhá-lo. Depois do casamento, Hermínia deixara a sua terra, S. João de Ver, perto de Sta Maria da Feira, onde trabalhava numa fábrica de rolhas, para viver em Perosinho, onde não tinha família nem conhecia ninguém. Deixou de trabalhar e aborrecia-a ficar sozinha em casa quando o marido ia para as provas, por isso seguia-o sempre que podia. Principalmente na Volta a Portugal e na sua etapa mais famosa e mais animada: a da Serra da Estrela. Bebé, na alcofa, Vanessa ia também.
Era uma festa. Hermínia costumava levar as irmãs, e os respectivos maridos, que integravam a claque de Lau e dos irmãos António, José e Leonel, que também competiam na corrida. Os apoiantes ficavam todos acampados, enquanto os corredores se instalavam num hotel. As mulheres cozinhavam canja e outros alimentos para os atletas, os homens contribuíam de outra forma. Naquela época, era costume (e permitido) que os amigos de cada corredor o ajudassem no troço mais difícil da etapa, empurrando-o pela subida da Torre.
Formavam-se grandes grupos de “empurras”, que se assumiam como rivais uns dos outros e se envolviam em colossais cenas de pancadaria. “Nós ficávamos doentes de emoção”, recorda Hermínia, que ainda não tinha 30 anos.
Venceslau tinha 40 quando Vanessa nasceu, 39 quando ganhou a Volta pela primeira e última vez. É um lutador. Um homem seco e rijo, que olha o interlocutor nos olhos e irradia jovialidade e amargura ao mesmo tempo. Um homem simultaneamente andrógino e viril, agressivo e doce. “A derrota não é de quem chega atrás. É de quem não se esforça para conseguir”, diz. “Competimos sempre connosco próprios. Os adversários não são nossos inimigos. Sem adversários não conseguiríamos ter sucesso”.
Nasceu muito pobre. Era o mais velho de sete irmãos, e aos 5 anos teve de começar a trabalhar, carregando cestos de terra para as obras. Ganhava 25 tostões por dia. Depois começou a levantar-se mais cedo, antes das seis da manhã, para ajudar o padre a preparar a missa. Com isto juntava mais 25 tostões. Aos 6 anos entrou para a escola, que acumulou com os dois “empregos”, e ainda mais um, a partir dos 9 anos: trabalhar como trolha, no Porto, para onde ia todas as tardes a pé, 30 quilómetros ida e volta. O dinheiro que ganhava entregava-o quase todo à mãe.
Com o pai, gostava de ir ver os ciclistas da Volta a Portugal a passarem pelos Carvalhos, e, aos 11 anos, tinha poupado dinheiro para comprar a primeira bicicleta, ao tio Custódio, que emigrara para a Venezuela. Entrou numa corrida, no Porto, mas caiu, partiu a bicicleta e teve de desistir. Continuou a tentar. Aos 20 anos, com um emprego das 7h30 da manhã às 8 da noite, conseguiu participar pela primeira vez na Volta a Portugal. Ficou em último lugar.
Trabalhou numa fábrica e depois numa serralharia, onde compensava, com horas de trabalho nocturno, as que gastava de dia com os treinos. Em 1966, com 21 anos, ficou em 32º na Volta. E continuou, até que em 1970 o Centro de Medicina Desportiva do Porto lhe detectou um sopro no coração e o considerou incapaz para a prática desportiva.
Foi para França trabalhar na construção civil. Mas regressou no ano seguinte, para tentar outra vez a Volta. Submeteu-se a novos exames de várias juntas médicas, e só no próprio dia do início da prova conseguiu a aprovação, no Hospital de S. João do Porto. Correu para Campanhã, apanhou o comboio e chegou a tempo de alinhar na partida. Esgotado e ser ter comido o dia todo, ficou em último na etapa. Chegaria ao fim em 11º lugar.
Continuou a concorrer, sem nunca ganhar. Aos 35 anos começou a ser conhecido pelo “velho Lau”. Ciclistas como Joaquim Agostinho e Marco Chagas fizeram na mesma época as suas carreiras brilhantes, deixando Venceslau na sua sombra. Mas ele esperou pacientemente, e sobreviveu-lhes. Em 1984, aos 39 anos, o “velho Lau” ganha finalmente a Volta. “Deixem-me abraçar este momento”, disse ele aos jornalistas.
Em 1987 já era o ciclista mais velho do mundo em provas profissionais por etapas, mas parecia que a sua carreira mal tinha começado. Em 1990, com 45 anos, caiu da bicicleta, foi levado de ambulância, que teve um acidente, ferindo Venceslau outra vez. Em 1991, com 46 anos, lá estava ele na sua 22ª Volta a Portugal. Ficou em 69º lugar e não concorreu mais. Foi convencido a parar, contra a sua vontade, sob a ameaça de ver cancelada a sua licença desportiva.
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Nessa altura Vanessa tinha 6 anos e já uma notória destreza física. O pai inscreveu-a na natação, no Sporting de Espinho, com o objectivo de lhe proporcionar uma formação desportiva completa. Aos 3 anos comprara-lhe a primeira bicicleta, com rodinhas, e aos 4 ela já usava para ir de casa para a oficina, que fica a cerca de um quilómetro.
“Vamos fazer uma corrida?” desafiava ela. “Daqui até ali”. Corriam e Venceslau tinha de a deixar ganhar, ou ela ficara inconsolável. Sempre foi assim. Sempre gostou de ganhar.
Fez a escola primária em Perosinho, mas depois, como na vila não havia secundário, foi para os Carvalhos. Foi lá que começou a participar em provas escolares de atletismo. Com 9 anos, o pai levou-a a um professor de atletismo na Maia, que ficou surpreendido com ela e a fez entrar em várias provas. Vanessa tomou-lhe o gosto. Ia ao Porto, a Braga, a Aveiro, corria e ganhava.
Queria participar em tudo. Um dia fez uma prova de atletismo na Maia, de manhã. Mas queria também entrar numa de natação, num campeonato em Aveiro, à tarde. Venceslau levou-a de moto, ela com a sua mochila, ansiosa por ganhar mais uma competição.
Gostava de atletismo, embora fizesse também ciclismo com o pai, e natação, que ele considerava uma boa actividade para a forma física. “É importante para qualquer atleta”, explica. “Eu sempre disse aos meus filhos: o melhor investimento que vocês podem fazer é na vossa saúde. Por isso sempre quis que eles desde cedo praticassem várias modalidades, não para que viessem a ser atletas de alta-competição, mas para que tivessem uma formação completa. Porque eu dei uma boa formação aos meus filhos. Não andei a dormir”. Além do desporto, Vanessa frequentou a Escola de Música de Perosinho, a aprender flauta transversal. Vânia, a irmã mais nova, aprendeu violino.
Mais tarde, esta educação multifacetada seria apontada como uma das causas do génio desportivo de Vanessa Fernandes. Além, obviamente, dos factores genéticos — as características físicas e, sobretudo, psicológicas herdadas de Venceslau.
Quando Vanessa tinha 13 anos, apareceu lá na loja um amigo do pai, José Mariz, dirigente do Belenenses, que desafiou Venceslau a levar a filha a uma prova de triatlo, em Peniche. Vanessa nem sabia o que isso era. “Teatro? Ok, vamos lá fazer isso”.
Venceslau arranjou uma bicicleta e, na véspera da prova, foram treinar. Na fúria de ultrapassar o pai, Vanessa meteu a roda dianteira na vala de uma obras, caiu e ficou cheia de nódoas negras. Mas não quis desistir. Às 5 da manhã Venceslau foi buscá-la à cama, e levou-a ao colo para o carro, a dormir. Chegaram a Peniche às 8.
Era uma prova nacional com 200 atletas, 750 metros de natação, 20 quilómetros de bicicleta e 5 de corrida. A ondulação do mar estava tão forte, que Venceslau chegou a pensar proibir a filha de entrar. Mas lá lhe explicou as regras e ela foi. No fim da prova de natação, ele viu sair da água três homens e depois uma rapariga. Vinha transfigurada, nem a reconheceu, parecia estrangeira. Mas era ela, Vanessa.
Montou na bicicleta e ele foi atrás na sua, que tinha escondida, porque era proibido acompanhar os atletas. Vanessa completou tudo em 1º lugar, na sua categoria. Na geral ficou em 2º. Venceslau compreendeu logo. “Se quiseres ficar no triatlo, não perdes uma prova”, disse à filha. Não vejo adversários para ti”.
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Vanessa ficou. Começou a participar em provas, a ganhar e a dar nas vistas. Aos 15 anos foi convidada pela Federação de Triatlo a entrar para o Centro de Alto Rendimento do Jamor. Internada nas instalações especiais anexas ao Estádio Nacional, ela poderia dedicar-se inteiramente ao treino, usufruindo da pista e piscina olímpica, e de uma equipa técnica de alto nível.
Hermínia e Venceslau vacilaram. Achavam que ela era demasiado jovem. Mas Vanessa estava fascinada com a ideia. Pediu, chorou, e acabou por ir. Os pais impuseram algumas condições. As principais eram que continuasse a frequentar a escola e as aulas de música. Foi-lhes garantido que sim.
Em Setembro de 2001 Vanessa estava a viver no CAR, matriculada na Escola Secundária de Linda-a-Velha e treinada por Sérgio Santos, o director técnico nacional. Formou-se um grupo pequeno de atletas (três raparigas e quatro ou cinco rapazes), entre os quais Vanessa era a mais nova, e foi criado um ambiente de trabalho ideal.
O treino era intenso, concentrado e bem conduzido, e os resultados não tardaram a aparecer. Vanessa ganhava. Esforçava-se, cumpria, concentrava-se, e, onde quer que fosse, ganhava.
O progresso foi veloz e espectacular, o que provocou uma euforia e uma vertigem. “Em atletas muito jovens, a evolução é muito rápida”, explica Sérgio. “Os objectivos são atingidos rapidamente, o que gera um grande entusiasmo”.
Vanessa sentia que o seu trabalho produzia efeitos imediatamente, e portanto dava o máximo. Nos primeiros anos teve bons resultados, mas a partir de 2003 era a melhor. “Ela tinha uma aura de ganhadora”, conta Maria Areosa, atleta de triatlo que entrou para o CAR na mesma altura, embora seja um ano mais velha. “Ela sabia sempre que ia ganhar. Chegava à prova e pensava assim: o primeiro lugar é meu, vocês disputam os outros. E com toda aquela força mental, as outras olhavam para ela e já tinham perdido”.
Vanessa era tão confiante, que não se deixava intimidar por nada. Maria lembra-se de um dos primeiros campeonatos internacionais em que participaram as duas, em Lugo. Todas as outras atletas eram mais velhas. “Estávamos cheias de medo, mas a Vanessa não. Disse logo: Isto é tudo uma porcaria, nós chegamos ali e ganhamos aquilo tudo”.
Dois meses depois, na Alemanha, foi ainda pior. Todos os concorrentes tinham equipamentos sofisticados, de marcas exclusivas, uma roupa para correr, outra para o ciclismo… “Estávamos fascinadas e, mais uma vez, cheias de medo. A Vanessa declarou: Estas gajas têm a mania que andam muito, mas nós vamos dar-lhes uma coça”.
E depois competiu com tanta paixão que, ao passar da bicicleta para a corrida, se esqueceu de calçar as sapatilhas. Só reparou quando sentiu a aspereza do chão nos pés descalços. Ao vê-la chorar, Maria descalçou um dos seus ténis e atirou-lho. Terminaram a prova assim, com um sapato cada uma.
Em 2004, na Taça do Mundo, “a mais nova que lá estava era pelo menos 10 anos mais velha do que nós”. Mas Vanessa atravessou a meta em primeiro. “Como sabia ela que ia ganhar? Não sei como fazia. É mesmo maluca. Tem garra, é competitiva. Tem fome de ganhar. Ela é uma ganhadora. Se não for no desporto, se se dedicar a outra coisa qualquer, será sempre uma ganhadora”.
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A vida no CAR era obsessiva. Treinava-se desde as 6 da manhã até às 8 da noite, todos os dias. Não havia mais nada. Tudo era organizado em função dos treinos, dos cinco treinos diários. Todos os atletas dormiam em quartos duplos, excepto Vanessa, que tinha um só para si. Mas era um cubículo claustrofóbico. Depois do jantar, Vanessa ia ter com os colegas, que se reuniam no quarto de um deles, para conversar. Mas os temas não eram muito variados. “Falávamos sobre triatlo”, conta o triatleta Bruno Pais, que esteve internado no CAR entre 2000 e 2007, e hoje, aos 29 anos, vive na sua própria casa, com a mulher e a filha, perto do Centro. “O que fazíamos era comer, dormir e treinar todos os dias. Não íamos ao cinema nem sair à noite. Por isso os nossos temas de conversa eram os treinos, os tempos que fizemos, as reacções do treinador”.
Aos fins-de-semana, alguns iam a casa, mas levavam um programa de treino rígido para cumprir. Na alta-competição não há dias de folga. “Desde que foi para Lisboa, ela ficou diferente”, diz Vânia, a irmã de Vanessa. “Não queria saber de nada além daquilo. Não se interessava por nada, não queria sair à noite, não ouvia música”.
Por viverem longe, Vanessa e Bruno (que é do Fundão), ficavam muitas vezes no Centro. Vanessa passava alguns fins-de-semana em casa de Sérgio, no Alentejo. O treinador considerava que era a melhor opção, porque ir a Perosinho cansava-a e perturbava-a.
Sérgio Santos tinha fama de ser um treinador competente e rigoroso, mas também frio e implacável. Não perdoava qualquer prevaricação ou quebra de disciplina. “Se chegava atrasado ao treino, fazia mais mil metros de natação, de castigo”, conta Bruno. Ou se Vanessa se deixava dormir e não chegava à hora combinada de partida da carrinha para algum local específico, Sérgio não esperava e fazia-a ir a correr até ao local do treino.
O treinador estabelecia uma relação intensa com os atletas, que simultaneamente o admiravam e temiam. Quando ele não ficava satisfeito com uma performance, nem precisava de falar: os seus olhos diziam tudo. Vanessa tinha medo desse olhar reprovador de Sérgio.
“Os treinos são muitos violentos, estamos sempre nos limites da resistência”, diz Bruno. Vanessa queixava-se mas não deixava de cumprir. “Estou toda rota”, repetia ela. Mas treinava, e chegava às provas e ganhava. “Então estavas toda rota?” brincavam os colegas.
Sérgio estabeleceu objectivos ambiciosos. Com Vanessa, queria ganhar tudo. Em 2003 apontou logo os Jogos Olímpicos de 2004 como meta, e depois, como a atleta tivesse obtido em Atenas o 8º lugar, ainda com 17 anos, começou a trabalhar para Pequim em 2008.
O regime de treino era adequado a este frenesim estratégico. Multiplicavam-se as horas de trabalho efectivo, e os tempos livres e de descanso eram monitorizados ao pormenor. A alimentação também, apesar de não haver no Centro um nutricionista nem um psicólogo. Às horas das refeições os treinadores observavam os pratos de cada um e divagavam perigosamente sobre a correlação entre gramas de peso corporal e segundos nos tempos das provas.
“Se perderes um quilo corres mais rápido 10 segundos por quilómetro”, dizia o treinador, segundo Maria Areosa. “Se a diferença entre ser 5º ou 1º na Taça do Mundo for de 20 segundos, a distância entre ter uma medalha ou não é de dois quilos”.
Vanessa ia cada vez menos a casa, e quando ia levava uma tenda especial em cujo interior era criada uma atmosfera artificial e rarefeita para simular os treinos em altitude. Para exasperação de Venceslau, a tenda era montada no quarto e Vanessa dormia lá dentro.
O pai de Vanessa não concordava com nada disto. “Um atleta só a partir dos 25 anos é que se explora totalmente. Eu só aos 35 é que estava no auge. Ganhei a Volta aos 39”. O “velho Lau” não andou na Universidade, nem fez um mestrado em Treino de Alto Rendimento na Área do Triatlo, como Sérgio. Tudo o que sabe, aprendeu à sua custa. No início da carreira, comia bife com batatas fritas ao pequeno-almoço, para ter energia para as provas. Com o tempo, num processo de tentativa-erro, foi aprendendo a escolher uma dieta adequada. E que, por exemplo, não era prejudicial ter relações sexuais na semana anterior às provas.
Também quando às idades adequadas a cada tipo de treino ele foi tirando as suas conclusões. “Sempre vi isto: os ciclistas que aos 15 anos já ganhavam, aos 20 já não queriam saber da bicicleta”.
Não havia forma de Sérgio e Venceslau se entenderem. O conflito foi real, por vezes ostensivo, e durou os nove anos que Vanessa esteve no CAR. Depois de um fim-de-semana em que Vanessa vinha a casa, Sérgio telefonava ao pai: “O que é que você lhe faz aí, que ela chega cá abaixo e parece uma velha a correr?” Venceslau respondia: “Quando ela vem é para descansar. Um atleta precisa de retemperar forças”.
Noutra ocasião, depois de Venceslau ter feito um comentário na televisão sobre o desempenho da filha numa prova, foi chamado a Lisboa para, numa reunião, ser exortado a calar-se, para não prejudicar a carreira de Vanessa.
Esta sentia-se dividida e sofria com o conflito entre o treinador e o pai. Por isso passou a optar por não vir a casa, e falar o menos possível com a família. Preferia passar o fim-de-semana em casa de Sérgio, o que ofendia Venceslau e Hermínia. “Eles estavam a espremê-la até à última. A aproveitar-se dela”, diz Lau. “E convenciam-na a não me dar ouvidos”.
Segundo Venceslau Fernandes, a hostilidade começou bem cedo, mal ele e a mulher se aperceberam de que a filha não ia à escola. “Ela não precisa. Não tem tempo”, ter-lhe-ão dito da Federação. O facto é que Vanessa nunca frequentou as aulas. De início, a Federação justificava-lhe as faltas. Depois deixaram-na reprovar. Não chegou a fazer o 10º ano.
No entanto, os regulamentos do CAR referem como objectivo a “formação plena do cidadão” e “proporcionar condições para o estudo”, e estabelecem como regra que se um atleta não tiver aproveitamento escolar dois anos seguidos será expulso do CAR. Por “aproveitamento”, explicitam ainda os documentos normativos do Centro, entende-se pelo menos 50 por cento dos créditos no Ensino Superior e o transitar de ano no caso do Secundário. Ora Vanessa não transitou, durante nove anos seguidos.
“Ela não chumbou: ela abandonou”, começa por explicar José Luís Ferreira, presidente da Federação de Triatlo. “Bom, chumbou por faltas”. Não ia às aulas, por causa do treino. Mas isso deveu-se, segundo o responsável da Federação, “à falta de apetência da Vanessa pelo estudo. Ela já não ia às aulas antes de vir para cá. Alertei os pais para a situação e eles responderam que não fazia mal. Assumiram o ónus do problema”.
Venceslau e Hermínia garantem que Vanessa sempre foi à escola e foi boa aluna. José Luís, por seu lado, lembra que todos os outros atletas do CAR continuaram os estudos, excepto Vanessa e Bruno. “A Vanessa foi diferente, por responsabilidade dela”, aponta. E dá exemplos de vários atletas de Alto rendimento que frequentam ou concluíram cursos superiores. É o que acontece com a sua própria filha. “Já o meu filho mais novo não gosta nem quer estudar, mas eu obrigo-o”.
No caso de Vanessa foi considerado preferível abandonar a escola. “Tinha pouca apetência para estudar. O que lhe restava era o triatlo. Optou por fazer carreira no triatlo”. E a Federação apoiou-a nessa decisão pessoal e madura, fazendo tábua rasa das suas próprias regras.
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É consensual entre os colegas e treinadores que Vanessa sempre teve dificuldade em tomar decisões de forma autónoma. “Ela é o tipo de atleta que precisa de alguém sempre ao pé, para incentivar”, diz Bruno Pais. “Não é muito autónoma. Para fazer os seus treinos precisa do treinador perto, a controlar tudo”.
Maria Areosa recorda um dia em que, em Atenas, conheceram um treinador espanhol muito famoso, que andava sempre nas capas das revistas. Ficaram ambas embevecidas, mas foi Maria quem foi ter com ele, pedindo-lhe para a treinar. Vanessa ficou estarrecida. “Ela nunca seria capaz de tomar aquela iniciativa. Precisava de se sentir segura”. Nunca faria nada contra a vontade dos seus treinadores.
Maria fazia provas fora dos circuitos oficiais, em vários países, só pela aventura. Participou numa no México e depois ficou lá de férias. Uma vez, partiu de carro, com o namorado, e ia participando em provas, em vários países, para ganhar dinheiro para a viagem. Enquanto ficasse nos primeiros lugares, continuariam. Se perdesse teriam de regressar.
Vanessa, diz Maria, ficava fascinada com estas iniciativas. Mas nunca seria capaz de as tomar. Era demasiado dependente. “Fazia tudo o que lhe mandavam, e ganhava sempre. Por isso pensava que estava no caminho certo, e continuava a obedecer. Ela confiava. Nos pais, nos treinadores, desde os 16 anos. E como tinha êxito, continuava a confiar”. Mas isso, considera a amiga, “é consequência da sua educação desportiva. Sempre foi assim, já com o pai”.
Sérgio Santos não desmente que Vanessa é uma atleta pouco independente. “Ela precisa de um treinador sempre ao lado. Mas não é para a picar. A função do treinador era fazer com ela se controlasse, andasse mais devagar”.
Sérgio, que em Junho do ano passado deixou a Federação e o CAR do Jamor, é agora técnico do Centro de Preparação Olímpica de Rio Maior, que pertence a uma empresa municipal, a DESMOR. Atletas de diferentes países vêm para aqui de propósito para trabalhar com ele.
“Eu uso 6 velocidades diferentes”, diz ele aos nadadores antes de mergulharem na piscina. “Cada um sabe a velocidade a que tem de nadar, de acordo com o que está escrito no quadro”. Para um grupo da selecção olímpica brasileira, que acaba de chegar, explica: “…a 3 é a velocidade para distâncias longas. A 4 e a 5… A 6 é a velocidade máxima, para distâncias muito curtas, da ordem dos 25 metros”. Os atletas desatam a fazer piscinas e Sérgio vai-os informando, em português ou inglês, dos tempos que fizeram. “O importante não é dar o máximo. É cumprir os tempos da zona 4”.
Este tipo de controlo não era fácil com Vanessa, porque ela queria sempre dar o máximo. “Ao contrário dos desportos colectivos, em que não se nota tanto a diferença, nestes desportos individuais há uma relação muito directa entre trabalho e resultado desportivo”. O atleta sabe que tudo depende dele, e, se está muito empenhado nos objectivos, pode ter tendência para ignorar os seus próprios limites. Cabe ao treinador não o permitir.
“Quando íamos correr, ela começava logo a dar o máximo, e não abrandava”, conta Maria. “Ninguém aguentava. Eu dizia-lhe: ‘Sempre à morte, Vanesa? É preciso correr sempre à morte?’ Mas ela continuava. Sempre ali, no limite das forças. ‘Então Vanessa? Sempre à morte, sempre à morte’”.
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Na modalidade do triatlo, Vanessa Fernandes é uma das melhores atletas do mundo, de todos os tempos. Talvez mesmo a melhor. “Ela tem qualidades de grande resistência”, diz Sérgio. “É excelente do ponto de vista fisiológico e psicológico. E tem competitividade muito grande. Há atletas que nunca chegam a fazer, em competição, tempos tão bons como nos treinos. Ela não é assim. Quando se aproxima das competições, melhora. Transforma o nervosismo em prestação. Tem um perfil de ataque”.
Sérgio garante que sabe distinguir os atletas à primeira vista. “À partida, alinham no pontão umas 70 atletas. São todas sensivelmente da mesma altura, entre 1m60 a 1m75. Mas ali já se vê. Há umas que parecem ter 2 metros. Vê-se pelo olhar, pela forma como alinham, como se estimulam, dando palmadas nas pernas. Há as que sabem que vão ganhar. Vanessa é assim”.
Bruno lembra-se da “garra” e da “vontade de trabalhar” de Vanessa. “Ela treinava com os rapazes, porque o andamento dela era equivalente ao nosso. Ela sempre deu o seu melhor. E achava natural ganhar. Considerava uma derrota ficar em segundo”.
Para Maria, ela “é uma perfeccionista. Procurava a perfeição. Por isso não fazia mais nada. Tem uma força imensa. É uma referência para mim”. Paulo Colaço, o actual treinador, vê em Vanessa o “modelo perfeito” de atleta, que conjuga “boas características fisiológicas, derivadas do património genético”, com traços psicológicos exemplares. “Ela é persistente, focaliza os objectivos”, e possui uma imensa “capacidade de superação. É uma caixinha de surpresas”.
Licínio Pimentel, corredor de estrada de fundo e meio-fundo, que se treinou com Vanessa quando ela regressou ao Porto, classifica-a como “uma máquina de guerra”. Não se cansa, tem uma capacidade de sofrimento fora do normal e aquela atitude inconfundível, “de guerreira”, a correr a a andar de bicicleta.
Paulo, que afirma reconhecer cada um dos seus atletas de olhos fechados, só pelo som dos pés a bater no chão, diz que Vanessa “tem um contacto suave e elástico com o solo”. Mas é a sua postura na bicicleta que a torna identificável entre milhares. “Na bicicleta, ela transforma-se, é outra pessoa. Não aquela rapariga frágil. Enrola os ombros para a frente, fica assim corcunda, naquela posição nada feminina”, descreve Licínio com admiração. “Geralmente as mulheres não andam assim de bicicleta”.
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Com estas características, em 2006, aos 21 anos, Vanessa ganhara mais medalhas do que qualquer outra atleta da sua idade. Quando chegava a uma prova, todos esperavam que ganhasse, e isso fez nascer nela um sentido de responsabilidade. Não podia perder. E não perdia. Mas a pressão foi crescendo. Tinha à sua volta os jornalistas, os patrocinadores, os treinadores, a família, o país inteiro. Ela não podia decepcionar. Era preciso fazer mais. Havia o Campeonato do Mundo, os Jogos Olímpicos. Os objectivos eram cada vez mais ambiciosos, desmesurados. Era preciso ser a melhor do mundo.
Vanessa superava-se. Estava cada vez mais em forma, cada vez mais rápida, cada vez mais magra. E adoeceu. “Eles precisam das medalhas, por isso não reconhecem que uma pessoa está doente”, diz Maria Areosa. “Ela era a galinha dos ovos de ouro”.
Publicamente, não reconheceram. Mas, segundo o presidente da Federação, detectaram a doença, em 2006. Contactaram o médico do Benfica, e “Vanessa começou a ser tratada com as estruturas médicas da Federação”, diz José Luís Ferreira. “Foi assistida por uma equipa médica. Mas foi um fracasso”. Depois, “ela quis um psiquiatra. Mas também não resultou”.
Mantiveram o problema em segredo, e Vanessa continuou a participar em todas as provas, como se nada se passasse. Nesse mesmo ano de 2006 ganhou 11 competições, entre as quais seis Taças do Mundo. Em 2007 venceu a classificação global da taça do Mundo, em Hamburgo. Nunca trabalhara a um ritmo tão intenso. “Vanessa competiu em Pequim e nas provas anteriores já doente”, diz o presidente da Federação.
“Segundo os médicos, a doença não foi provocada pela prática desportiva, mas era potenciada por ela”, admite José Luís Ferreira. E no entanto não houve qualquer abrandamento dessa prática. Vanessa começou a deixar de ter vontade de competir, mas não a deixaram descansar.
“A doença era evidenciada por factores de pressão”, diz o presidente. A pressão a que Vanessa estava cada vez mais submetida, pelas provas cada vez mais importantes a que concorria. Pelos media, pelos patrocinadores, pelos fãs, e pela obrigação de ganhar.
“Nós entrámos no triatlo porque éramos boas, e alguém nos mandou para ali. Não foi propriamente uma opção”, diz Maria, que em 2004 decidiu abandonar o desporto, durante 4 anos. “Eles sempre acharam que ela ia aguentar, porque ela ganhava sempre”. Mas acrescenta: “Chega uma altura em que é mais fácil continuar do que desistir”.
Vanessa continuou. “Ela é única, é de outro mundo”, diz José Luís. “Não conheço ninguém com a mesma capacidade de inverter uma situação, em horas. Em 2007 ela estava de gatas. Estivemos quase para cancelar a sua participação. Mas depois…”
***
2008 era a grande data. Uma medalha de ouro em Pequim era o sonho de todos, desde o início. Incluindo o de Vanessa, que, desde os nove anos, dormia com um póster de Rosa Mota no quarto. Agora, já não tinha vontade de lutar por esse sonho, mas fazia-o em nome dos outros, dos portugueses.
Nos meses anteriores aos Jogos, sucederam-se os desaires. No Campeonato do Mundo, em Vancouver, ficou em 10º, alegadamente por causa da água fria, e na etapa de Hamburgo desistiu, devido a uma suposta intoxicação alimentar, depois de também ter desistido em Pontevedra, por risco de hipotermia.
Os dirigentes da Federação sabiam que Vanessa estava pior, que o seu problema se agravava, e, em Pequim, tomaram medidas. Não a instalaram na aldeia olímpica, como seria normal, mas numa vivenda que arrendaram em Changping, a 30 quilómetros de Pequim e a 500 metros do local da prova. Ficou ali isolada de toda a confusão, na companhia dos pais, convidados pela Federação. “Ao tirá-la da aldeia olímpica, livramo-la de toda a pressão”, explica José Luís. “Para criar as melhores condições, e para que ela pudesse mostrar todo o seu potencial”.
Havia grande expectativa em relação a um certo número de atletas portugueses. Mas os primeiros dias da sua participação foram decepcionantes. Não houve medalhas. Telma Monteiro e Jessica Augusto não ganharam. O lançador de peso Marco Fortes disse que “de manhã só é bom é na caminha”, para justificar o seu 38º lugar. A última esperança era Vanessa Fernandes.
“Depois dos jogos, não sei o que vai ser a minha vida”, disse ela à mãe, antes da prova.
“Já fizeste o que muito atletas nunca conseguiram, não tens de provar mais nada a ninguém”, respondeu Hermínia. Sabia que a filha tinha de parar. Mas não tinha coragem para lho dizer claramente. Ninguém tinha. “Como podia dizer alguma coisa?” confessa Vânia. “Se depois ela falhasse eu seria considerada responsável”.
Venceslau sentia o mesmo. Quem era ele, para prejudicar uma carreira daquelas? “Tu és uma medalha olímpica. Não posso ser eu a treinar-te. Porque se depois os resultados não aparecerem dizem que a culpa foi do pai”.
Vanessa despediu-se dos pais e partiu para a prova. “Que o Espírito santo te ajude a conseguires o que queres”, disse Hermínia. “Ele vai-me ajudar”, respondeu Vanessa, “mas eu também tenho de querer”. E lá foi, magrinha, os pés a voar sobre o solo num contacto suave e elástico, corcunda em cima da bicicleta, com o peso de um país inteiro sobre os ombros enrolados para a frente.
“É prata, mas para mim vale ouro”, disse à mãe quando voltou. E à irmã confessou: “Eu ganhei esta medalha mas não merecia. Havia outros que a mereciam mais”.
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Depois dos Jogos, Vanessa perdeu completamente a vontade de treinar e competir. Nunca mais ganhou nenhuma prova. Nunca mais terminou nenhuma, aliás. Confessou mais tarde que fez treinos de duas horas de bicicleta a chorar do princípio ao fim. Correr, nadar, andar de bicicleta tornaram-se num sacrifício.
Mas a frustração pelos insucessos levava-a a querer continuar. Sérgio diz que tentou convencê-la a não ir a certas provas, mas ela insistia. O treinador quis também que ela comprasse uma casa em Lisboa, para sair do CAR, mas isso não foi bem visto pela família.
Em 2009, Vanesa acabou por decidir regressar ao Norte. Depediu-se do Centro do Jamor e de Sérgio Santos. Voltou a casa, para trabalhar com o pai. Venceslau contactou Paulo Colaço, professor na Escola Superior de Desporto, de quem tinha boas referências.
“Se um atleta tem como objectivo apenas render a curto prazo, eu não aceito trabalhar com ele”, diz Paulo, que condena a filosofia de treino aplicada pela antiga equipa técnica de Vanessa. “Depois dos Jogos, ela devia ter parado. É preciso desenhar ciclos de treino, de 4 anos. Provocar abaixamentos de forma, propositadamente. Porque se o abrandamento não for provocado, ele surgirá naturalmente. Há atletas que deixamos de ver, durante um período”. Regressam à forma máxima e à ribalta pouco antes das provas que decidiram disputar. “Há até mulheres que decidem interromper a carreira desportiva para ter um filho, e depois regressam”.
Além desta abordagem, Paulo Colaço atribui ainda grande importância ao factor humano no treino dos atletas. Não basta preocupar-se com o treino físico. O treinador deve também ter sob controlo os factores familiares, sociais e psicológicos do atleta.
Quando iniciou o trabalho com Vanessa, Paulo desenhou uma árvore, que vai completando, cujos ramos eram as várias vertentes do seu problema. Teve reuniões com os pais, com amigos. Acha que nenhuma faceta da vida de Vanessa lhe deve ser alheia.
O método parecia estar a resultar. Vanessa ainda obteve um resultado satisfatório no campeonato de Madrid. Mas era uma ilusão. Vanessa começou a faltar aos treinos. Inventava desculpas. Dizia a Paulo que estava com o pai, e a este que estava com Paulo. Na verdade, saía de carro de manhã e vagueava sozinha até à noite.
Para tentar divertir-se, começou a sair à noite, com a irmã. Mas Vânia percebia que ela não estava bem. Não tinha amigos. Cortou com os de Lisboa, e não voltou a contactar os antigos, de Perosinho. “Ela queria sair comigo e os meus amigos, para disfarçar o mal-estar. Queria distrai-se, mas estava completamente desorientada”.
Vânia tornou-se sua confidente. “Não quero mais o desporto”, dizia-lhe Vanessa, a chorar. “Eu já não ando a fazer isto por nada nem por ninguém. Só quero ser uma pessoa normal, ter um emprego normal”.
As duas, com os amigos de Vânia, iam aos bares de Santa Maria da Feira, à discoteca 4Ever Club ou ao Biba la Noche. Vanessa exagerava no álcool. Bebia de forma incontrolada, mas não se divertia. Numa dessas noites, conheceu H. Apaixonou-se e passou a namorar com ele. Nunca mais saiu com a irmã. Passava os dias e as noites com o namorado, numa relação que Vânia e o resto da família consideravam obsessiva e pouco saudável.
Vanessa e H. decidiram associar-se para comprar o bar onde ele trabalhava. Depois a relação deteriorou-se e o negócio tornou-se um problema para Venceslau resolver.
No início deste ano, após reuniões de Paulo Colaço com a família e responsáveis da Federação de Triatlo, Vanessa anunciou o afastamento da vida desportiva. Decidiu tratar o seu problema de saúde e a federação apoiou-a. Foi encontrado um psiquiatra, depois outro. A instituição onde se encontra actualmente é a quinta tentativa de solução, segundo José Luís Ferreira. Reuniu-se uma equipa multidisplinar de 20 pessoas, paga com um fundo do Comité Olímpico. O dinheiro da bolsa que estava afectado à preparação de Vanessa para os Jogos Olímpicos foi, com o acordo do Secretário de Estado da Juventude e Desporto, convertido num fundo de recuperação da atleta, no valor de 47 391 euros para este ano de 2011.
“O psicólogo responsável assegurou-me que a doença é genética, e que a Federação não tem portanto qualquer responsabilidade”, diz José Luis Ferreira. “Culpados somos todos: amigos, família, Federação, Comunicação Social”. Mas “trata-se de o pagamento de uma dívida. O país deve muito a Vanessa e tem a obrigação moral de a ajudar.
Vanessa está a treinar para os Jogos Olímpicos, mas isso não é condição para que ajuda continue, assegura José Luís. “Não será possível recuperar a atleta sem recuperar a pessoa, mas pode-se recuperar a pessoa, sem a atleta”.
Neste momento, Vanessa está isolada, submetida à autoridade, sem vida própria, dependente, a trabalhar para mais uma medalha. “Sempre foi assim”, lembra Maria. “Sempre a isolaram, sempre viveu numa bolha. Perguntávamos pela Vanessa e diziam que estava a descansar”.»
FONTE: Público
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