domingo, 25 de agosto de 2013

BLOCO DE LESTE

Ontem morreu Alexander Donner. Aproveitei para fazer uma pesquisa na internet sobre ele e as suas origens. Dessa pesquisa resultou esta entrevista que apresenta o testemunho de três atletas que desenvolveram atividade profissional aqui em Portugal e nos seus países de origem.
Conhecer a vida para além do antigo muro de Berlim, antes da sua queda, é algo que me seduz  incomensuravelmente. Assim, transcrevo uma entrevista com o testemunho pessoal de três atletas que têm a experiência de vida do lado de cá e do lado lá, antes e depois da queda do Muro de Berlim. Pareceu-me muito interessante.

«Suplemento de Domingo: Ion Timofte, Alexander Donner e Svetlana Kabelevskaia recordam antigo bloco de Leste
ATLETAS ERAM MAIS FORTES MAS A SUA VIDA CONTROLADA

A COMEMORAÇÃO do décimo aniversário da queda do Muro de Berlim foi pretexto para juntar três figuras de proa do desporto em Portugal, nas suas respectivas modalidades, oriundos da Europa de Leste: o futebolista romeno Ion Timofte, o treinador ucraniano de andebol do ABC, de Braga, e ex-seleccionador nacional, Alexander Donner, e a voleibolista russa Svetlana Kabelevskaia, que representa uma das melhores equipas nacionais, a Senhora da Hora. A ideia era pô-los a falar sobre o desporto na Europa de Leste antes da queda do Muro de Berlim e da derrocada do sistema socialista e contarem-nos as suas experiências.


A conversa fluiu com naturalidade perante a qualidade dos interlocutores. Timofte exprime-se melhor na língua de Camões que a maioria dos seus colegas de profissão portugueses; Svetlana, casada com um português e à espera do deferimento para o pedido de naturalização que formulou de forma a poder representar a selecção portuguesa, idem aspas; Donner, um anti-estalinista e anti-Gorbatchov convicto, não tem a mesma fluência, mas é uma personalidade interessantíssima, de outra geração, com uma vivência muito rica, da qual nos revelou algumas facetas, que por falta de espaço não pudemos reproduzir nestas páginas. Aliás, o treinador do ABC foi uma surpresa na medida em que nos tinham alertado para o seu feitio sisudo e impenetrável e acabou por se revelar uma pessoa aberta, com um sentido de humor subtil, e um jeito particular para contar anedotas...


Entre os três, a curiosidade de terem vindo para Portugal no mesmo ano, em 1991. Uma coincidência. Apesar da sua avó materna ser russa, Timofte não conseguia comunicar com Svetlana e Donner nessa língua, dada a origem latina do romeno, pelo que o fez sempre em bom português. Pena foi que o espaço tivesse sido escasso para contar outras experiências dos nossos convidados e dar a conhecer a estrutura em que assentava o desporto no Bloco de Leste em termos do acesso da população à prática desportiva.


RECORD - Como é que funcionava, em linhas gerais, o modelo base sobre o qual assentava o desporto de alta competição no antigo Bloco de Leste e que tão bons resultados desportivos proporcionou durante anos a fio?


ION TIMOFTE - Diziam que havia um modelo amador, mas era totalmente profissional. Os clubes eram das câmaras municipais e quem mandava era o partido, que tinha representantes em cada cidade, em cada região. Os dirigentes dos clubes eram, também, nomeados pelo partido. Quem quisesse subir na hierarquia, em qualquer actividade, tinha de pertencer ao partido. Dou-lhe um exemplo: num plantel de vinte jogadores de um clube, dois ou três eram empregados da EDP, outros da Companhia das Águas e por aí fora. Eram distribuídos por empresas ou departamentos do Estado. Havia como que um entendimento: o chefe do partido nessa região ou cidade ia ter com o presidente de uma empresa e dizia-lhe que precisava que dois ou três jogadores se tornassem empregados dessa empresa e que esta lhes pagasse ao fim do mês. Realmente os jogadores iam lá receber o ordenado, mas só lá punham os pés no fim do mês. Só os prémios eram pagos pelo clube. Eles diziam que os jogadores eram amadores, que tinham os seus empregos, mas a verdade é que só jogavam à bola e eram totalmente profissionais. Havia alguns que estudavam...


ALEXANDER DONNER - E outros eram militares, até havia coronéis...


I. T. - Não sei se na Rússia era como na Roménia...


SVETLANA KABELEVSKAIA - Por exemplo, uma atleta que fosse sargento e ganhasse uma competição importante era promovida a uma patente superior...


I. T. - Na Roménia havia o Dínamo, que era o clube da polícia, e o Steaua, que era o clube do exército. Quem mandava era o ministro das Internas - o correspondente cá ao ministro da Administração Interna. Todos os jogadores que iam para o Dínamo tinham logo a patente de tenente e depois eram promovidos consoante o peso que tinham na equipa e os títulos que ganhavam. Por exemplo, se um jogador do Dínamo era mandado parar pela polícia de trânsito, apresentava um cartão que tinha e ainda o cumprimentavam e pediam desculpa pelo incómodo. (risos) Um jogador jovem que brilhasse num clube pequeno e que despertasse o interesse do Steaua, era logo contratado porque lhe prometiam livrar da tropa, que era uma vida dura.


A. D. - Na União Soviética a rivalidade era grande entre o Dínamo de Moscovo, que era o clube da polícia, e o CSKA de Moscovo, que era o clube central do exército, porque havia outros CSKA's...


GANHAR ACIMA DA MÉDIA


I. T. - [metendo a colher no futebol soviético] Por exemplo, quando jogava o CSKA de Moscovo contra o CSKA de Leninegrado era obrigatório ganhar o de Moscovo...


A. D. [acusando o toque] Na Roménia era a mesma coisa com o Steaua e o Dínamo...


I. T. - Sim, sim, por isso é que eram sempre as duas melhores equipas... Se um jogador, mesmo já credenciado, recusasse ir para o Dínamo pagava um preço alto por isso. Lembro-me de um caso de um jogador que não quis ir para o Dínamo. O pai desse jogador tinha um pequeno negócio e eles chegaram ao cúmulo de enviar a polícia económica para o prender, alegando que não tinha os papéis em ordem, para obrigar o filho a ir jogar para o Dínamo.


I. T. - Quem pagava era o partido. Os melhores jogadores ganhavam um pouco mais do que os outros, por isso eram colocados em cargos superiores no emprego para justificar os melhores ordenados que lhes pagavam.


R. - Quer dizer que o craque da equipa podia ser o presidente da empresa...


I. T. - Lembro-me que um ano antes da revolução, estava na I Divisão, pelo Timisoara, e ganhava muito acima da média, melhor do que um engenheiro ou um médico... Dava para ter uma boa vida...


R. - Qual era o salário médio de um futebolista romeno?


I. T. - Tinha meses em que... Bem, ganhava em função dos resultados, as vitórias davam direito a prémio, embora não fossem muito elevados.


R. - Pode atirar um número só para ter uma ideia?


I. T. - Em moeda portuguesa?!... Não posso fazer...


S. K. - (rindo-se) Não dá...


I. T. - Não dá, não, porque eram outros tempos, não havia inflação...


A. D. - Só dá comparando com um engenheiro ou um médico...


S. K. - Na Rússia os médicos ganhavam muito mal... e hoje é a mesma coisa... Quando jogava no Dínamo de Moscovo, lembro-me que nós, atletas, não sabíamos quanto iríamos receber no fim do mês. Eu também era muito novinha, tinha 19 anos... Diziam, por exemplo, que eu ia ganhar 100 rublos por mês e depois não era assim. A disciplina era muito rigorosa e durante os treinos não podíamos falar, não podíamos rir. Se o fizéssemos, éramos multados, por exemplo, em dez rublos, descontados depois no ordenado.


I. T. - Metiam ao bolso...


S. K. - Pois metiam... E hoje em dia acontece o seguinte: a um atleta que sai para o estrangeiro dizem-lhe que vai ganhar xis e depois uma parte vai para o treinador, outra para o clube. Sei disso porque tenho colegas a quem isso aconteceu não há muito tempo.


R. - Não sei que a Svetlana era de rir e falar nos treinos, mas, mesmo com os descontos, quanto é que lhe sobrava para viver?


S. K. - Ganhava mais do dobro que a minha mãe, que era médica...


R. - Também tinha um emprego fictício?


S. K. - Não tinha emprego, mas frequentava a universidade. Frequentava... é uma maneira de dizer. Treinava duas, e às vezes três vezes por dia, não sobrava tempo para estudar. Quando tinha um exame, facilitavam, não o ia fazer, mas no fim do ano passava.


CARROS NOVOS E USADOS


R. - Como é que surgiu a oportunidade de jogar em Portugal?


S. K. - Através do meu treinador, que era muito amigo do presidente da Federação Russa. Nessa altura jogava noutra equipa, o Mopi, e ganhámos os Jogos Universitários, em 1990, que era um competição de prestígio na Rússia...


A. D. - Eu sou do século dezanove... (gargalhada geral)


S. K. - O clube vivia com dificuldades e o treinador disse-me que ia jogar um ano para Portugal e que cerca de metade do ordenado que ia ganhar seria para mim, e a outra metade para ele e para a equipa. Vim e acabei por ficar - já cá estou há oito anos...


A. D. - Comecei a praticar desporto, não no século dezanove, e como quase todos da geração que nasceu depois da II Guerra, crescemos na rua e fomos atraídos para modalidades como o boxe e lutas de vários tipos, que pratiquei bastante, mas no fim acabei por optar pelo andebol. Aquela geração praticava desporto mais por gosto do que por dinheiro. Naquela altura o desporto era a única forma de um jovem, que não fosse filho de uma família de um funcionário do partido ou de um engenheiro famoso, subir na vida [o meu pai era "chauffer"] e conhecer o mundo. Sabíamos que havia a Europa, a América e sonhávamos em lá ir e ver como era... Como atleta ganhei uma miséria, o que ganhava um sargento do exército que eu era, um falso sargento. Até menos que o meu pai. Mas havia uma diferença. O meu pai tinha mulher e três filhos e vivíamos num T0, eu dormia com o meu irmão na cozinha e a minha irmã com os pais no único quarto. E podíamos considerar-nos uma família feliz porque muitas outras não tinham sequer isso. Naquele tempo era o Estado que oferecia os apartamentos, não se podia comprar. O meu pai, como trabalhador, esperou dezoito anos por esse apartamento. Eu, como atleta, ao fim de dois anos casei e deram-me um T0. Outra vantagem dos atletas: para comprar carro qualquer pessoa na União Soviética, mesmo que tivesse dinheiro, tinha de esperar anos.


I. T. - Qual era o carro? O “Volga”?


A. D. - “Volga” era só para campeões dos Jogos Olímpicos... As coisas funcionavam assim: se ganhássemos um campeonato da União Soviética não pagavam prémios, mas o General não sei quantos passava-nos um papel a autorizar que este e aquele atleta podiam comprar um carro. Com o dinheiro que eu ganhava não precisava de carro, mas essa compra ia render-me mais tarde. A União Soviética era o único país no mundo onde um carro usado valia cinco vezes mais do que um carro novo... Porque para comprar um novo tinha de se esperar anos e anos e um usado podia ser logo utilizado. Até faziam "bicha" para comprar um usado...


JOGAR COM DEDOS PARTIDOS


R. - Quer dizer que havia um controlo absoluto das autoridades sobre a vida pessoal e desportiva dos atletas...


A. D. - Lá um treinador era Deus...


I. T. - Não havia respeito, mas sim medo...


A. D. - Se o treinador dizia não, acabava a conversa... Imagine que o ABC ia jogar a França e um dos atletas não andava a treinar em condições... Eu dizia-lhe: não vais a Paris! Qual é o problema para ele? Lá, naquela altura, imagine o que era o treinador chegar ao pé de um jogador e dizer-lhe que já não ia Paris... Era uma tragédia! Primeiro porque era a única hipótese de atravessar a fronteira, segundo porque num torneio no estrangeiro, um atleta ganhava mais do que num ano no clube. Por isso é que muitos futebolistas e atletas de bom nível que jogam na Rússia chegam a Portugal e se perdem. Não estão habituados a trabalhar assim, sem ninguém a controlar.


I. T. - Antes de 1989 só fiz uma viagem ao estrangeiro, à República Checa, pelo Timisoara. Não tínhamos passaporte individual, havia uma tabela com os nomes que era controlada por agentes da polícia secreta que vinham na comitiva para vigiar os jogadores. Nessa viagem parámos duas a três horas em Budapeste e dois colegas meus fugiram com a ajuda de uns amigos da Alemanha. Não queira saber o que passámos, os outros que ficaram, nessa semana, foram massacrados com interrogatórios.


R. - Acalentava, também, o sonho de dar o salto para o Ocidente?


I. T. - O futebol profissional para mim aparece por acaso. Era um bom aluno e o meu sonho era tirar o curso universitário. Jogava num pequeno clube, da II Divisão B de lá, fiz um campeonato bom e o Timisoara, que é o clube do meu coração e não o Boavista (risos), foi buscar-me. A partir daí comecei a dar nas vistas, cheguei à selecção e vi que o futebol podia ser o meu futuro. Se não fosse isso, seria hoje, provavelmente, um anónimo professor de educação física na Roménia.


R. - Se vos pedisse que apontassem as virtudes e os defeitos do modelo que existia na URSS em relação ao desporto de alta competição, o que diriam?


S. K. - Um aspecto positivo desse modelo era a noção muito clara que os jovens tinham de que para subir na vida era preciso fazer sacrifícios e ter um carácter forte. Penso que isso nos ajudava muito a vencer na competição... Como coisa negativa eu diria a forma como éramos vistos e tratados, como se fossemos máquinas... Hoje as coisas já não são assim, mas lembro-me que a primeira vez que fui à Bulgária jogar, pelo Dínamo, houve uma reunião com pessoas do KGB que depois seguiram na viagem e que nos deram instruções muito claras que não podíamos falar ou contactar com ninguém de fora, nem sequer olhar...


A. D. - Em termos de desporto de alta competição acho que as coisas funcionavam melhor lá do que cá, no Ocidente. Quando cá cheguei disseram-me logo: os portugueses, coitadinhos, não podem ficar longe da família mais de duas semanas, e outras conversas desse género. É ridículo e não aceito isso. A minha primeira viagem fora do país, como atleta, foi à Jordânia e também fomos acompanhados por um agente do KGB, que foi substituir o nosso treinador adjunto, e que obrigou o dono do hotel a retirar todos os televisores dos quartos. Para não sermos seduzidos... Mas, por outro lado, o espírito dos atletas do Leste da Europa era muito mais forte. Parti quatro vezes os dedos da mão [mostrando as sequelas dessas fracturas], mas nunca pedi a nenhum médico para faltar a um jogo por causa de um dedo partido. Ninguém me perceberia, nem o treinador nem os companheiros. Tinha de pôr uma ligadura e ir jogar. Uma vez joguei com uma costela partida, com uma esponja no peito que parecia a Marilyn Monroe... (ri-se) E era guarda-redes...


PROPAGANDA DO REGIME?


R. - Consideram que todo esse investimento do regime comunista no desporto servia como forma de propaganda e instrumento para desviar as atenções da população para a falta de liberdade e para os problemas sociais?


S. K. - Penso que sim...


A. D. - A verdade é que o alto nível que o Desporto atingiu foi muito mais importante para a população. Os sucessos desportivos faziam esquecer o nível de vida, o pouco dinheiro para comprar comida, sapatos, etc. Era o orgulho nacional em causa e que foi importante na época da guerra fria. Desporto e o exército eram as duas áreas onde o Governo ou o regime mais investiam (...) Até aos 30 anos acreditei em toda aquela propaganda, não tenho vergonha de dizer isto. Que éramos melhores, que estávamos a ajudar metade do mundo, da África à Nicarágua e ao Vietname. Eu era militar, participei na entrada das tropas russas na Checoslováquia e mais tarde quis oferecer-me como voluntário para a guerra do Afeganistão. Mas não me deixaram porque já tinha ultrapassado o limite da idade, tinha acabado nessa altura a carreira de jogador. Acreditei naquilo que lia nos jornais e ouvia e via nas rádios e na televisão, que nós tentávamos salvar o pobre povo do Afeganistão, que não podíamos passar a fronteira porque apareciam dezenas de agentes da CIA, que só devíamos andar acompanhados, etc., e quando comecei a sair para o estrangeiro com o andebol verifiquei que, afinal, ninguém vinha ter comigo... Além disso, lia muito, tinha uma biblioteca grande, com alguns livros proibidos na URSS, de Soljenine, por exemplo, que comprava lá fora, e se fosse apanhado ia preso (...) Quando vim para Portugal pensei: vou trabalhar dois anos, ganhar dinheiro e regressar para ter uma boa vida. Quem trabalhava fora garantia o futuro. Mas, entretanto, o Estado desmoronou-se e tudo o que ganhei cá não dá para comprar um apartamento lá. Infelizmente, não sou treinador de futebol...


R. - Como é que justificam a perda de competitividade do desporto dos países de Leste europeu desde a falência do sistema socialista?


A. D. - Não vou discutir com a Svetlana [que tinha acabado de referir que o voleibol na Rússia hoje está melhor do que estava na ex-URSS]. Mas pergunto: quem é hoje o campeão europeu de clubes de voleibol, masculino e feminino? Não é a Rússia, pois não!?, e antes era. Acho que piorou e vai piorar mais. Hoje um atleta de vólei ou outra modalidade da I Divisão na Rússia ganha muito mais do que qualquer outra pessoa. Mas o nível desse atleta, comparando com outro de há dez, quinze anos atrás, não tenho dúvidas que este era muito mais forte do que aquele. Antes os russos ganhavam, até no voleibol, os JO, os campeonatos do mundo... No andebol a selecção russa actual joga com "dinossauros", atletas de 35, 36 anos, e os novos valores são cada vez menos. Só que a Rússia é um país imenso e sempre aparecem dez ou quinze bons, mesmo que ninguém trabalhe a sério com eles. Comparando: Portugal tem um campeonato de andebol com mais força que a Rússia. Quem pensaria há dez anos que isso fosse possível?


S. K. - No voleibol a melhor equipa portuguesa só pode jogar na II Divisão da Rússia (...) Concordo com o que disse o sr. Donner, mas o voleibol na Rússia é hoje um caso à parte (...)


I. T. - Antes o desporto era fomentado ao nível do Estado, em particular o futebol. Hoje se este vai sobrevivendo, as outras modalidades, em algumas das quais a Roménia era uma potência mundial, como o andebol, podem desaparecer de um dia para outro. Não sabem se no fim-de-semana seguinte há dinheiro para pagar uma viagem.


«DOPING» NO DESPORTO DOS PAÍSES DE LESTE


A.D. - Na minha altura não existia “doping”. Infelizmente, nos últimos anos é que a Rússia e as outras repúblicas começaram, com um atraso de muitos anos, a sofrer os efeitos das drogas, da revolução sexual... O único “doping” no desporto que havia era o vodka... (gargalhada) Aliás, nós nem médico tínhamos nos clubes da I Divisão, como é que podíamos sequer pensar em “doping” (...) Na antiga RDA era diferente. Eu na altura estudei no mesmo curso de andebol com um alemão, que me contou algumas coisas a esse respeito. Ele tinha um caderno com informações que nunca dava a ler a ninguém, com um carimbo de "top-secret". Depois da II Guerra, muitos campos de concentração foram tomados pelas tropas russas e mais tarde passaram para a responsabilidade da Alemanha Democrática. E nesses campos havia muitas informações e dados sobre experiências médicas com prisioneiros, acerca da resistência do organismo humano a determinadas substâncias dopantes e os seus efeitos, resistência a cargas físicas, etc. Eles aproveitaram todo esse conhecimento aplicando-o no desporto, sobretudo em determinadas modalidades, sobretudo no atletismo e na natação.


S.K. - Eu era muito jovem, mas nunca me apercebi de alguma coisa que me levasse a suspeitar na existência de “doping”. Pelo menos, no voleibol feminino não havia de certeza...


I.T. - No futebol romeno também arrisco a dizer que não. Era difícil haver “doping” sem que os jogadores se apercebessem. Além disso, essa substâncias dopantes deveriam ser muito caras e dinheiro era coisa que não abundava na Roménia.


QUEDA DO MURO DE BERLIM


I.T. -- Provocou um sentimento geral de esperança. Tive logo a percepção que ia haver uma mudança radical, a vários níveis, sobretudo da liberdade de movimentos e de expressão. E houve. Só que as pessoas continuaram a viver tão mal ou pior, o seu nível de vida degradou-se (...) No desporto profissional, os clubes começaram a ter graves problemas económicos e deixaram extinguir várias modalidades para sobreviverem. No futebol a corrupção tomou conta da sua estrutura. Os resultados são falsificados. Antes da queda do Muro, quando se jogava com um clube mais forte, o delegado do partido falava com o treinador e este com o capitão, para ordenar que deixássemos ganhar o adversário. Aconteceu comigo quando estava no Timisoara. Não tínhamos como deixar de cumprir a ordem, embora nos custasse bastante. E nada transpirava cá para fora. Hoje em dia são os arranjos e as combinações que fazem lei no futebol romeno. Por isso é que o público deixou de ir aos jogos porque o descrédito é total. (...) Só a selecção é sagrada e mantém um bom nível porque a "geração de ouro", como é chamada na Roménia, saiu quase toda ao mesmo tempo para o estrangeiro, para bons clubes e campeonatos competitivos. Aliás, o actual seleccionador, Piturca, tentou o ano passado uma aposta na juventude, mas os resultados foram maus e tiveram de recorrer outra vez ao Hagi, ao Sabau e outros mais.


A.D. -- As mudanças no sistema na União Soviética, incluindo na área do Desporto, começaram antes da queda do Muro de Berlim, com a ascensão de Gorbatchov ao Poder. Foi um terramoto. Ele conseguiu destruir tudo em pouco tempo. Reconheço o mérito e o talento dele (risos). O que há hoje na Rússia não sei o que é. Há quem diga que é capitalismo, mas se é, é um capitalismo selvagem! Tudo piorou. Tenho três filhos, dois deles no desemprego (...) Não estou a dizer que o sistema anterior era um modelo de virtudes, longe disso. Nunca fui comunista. A “cortina de ferro” isolou-nos do mundo e deixou as pessoas "cegas". A censura que existia, enfim... havia muitas coisas más, mas, também, muitas coisas boas... Acho que o fomento do Desporto não deve estar nas mãos de “sponsors”, mas sim do Estado, a quem tem de caber a planificação e gestão. Aliás, os resultados alcançados pelos países de Leste nas grandes competições internacionais antes e depois do colapso do sistema comunista falam por si. A queda do Muro foi um símbolo e, se bem que eu, pessoalmente, não alimentasse muitas esperanças, havia um sentimento geral de que as coisas iriam melhorar. Mas ao fim de dois anos a ouvir diariamente Gorbatchov, percebi que era só treta... Nem ele próprio sabia o que tinha iniciado nem como ia acabar...


JOÃO CARTAXANA»

FONTE: Record

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